NO MESMO BARCO


A ideologia oficial das grandes civilizações, em todas as suas variedades, quer nos fazer acreditar que a história real e digna de menção não teria mais de quatro a cinco mil anos, e que a espécie essencial, na qual tendemos a nos incluir, surgiu da névoa justamente naquela época no Egito, Mesopotâmia, China e Índia. Naquele tempo apareceram escrivinhadores e escultores que pela primeira vez nos mostraram o que era o homem. Ecce Pharao, ecce homo – o homem não é mais antigo que a grande civilização, a verdadeira humanidade começando no seu apogeu. Talvez essa tese nunca tenha sido defendida expressis verbis de forma tão crua, mas em essência ela funciona toda vez que humanistas, teólogos, sociólogos e politólogos tem a palavra, a fim de modelar imagens coletivamente eficazes do ser humano. Todos eles fazem com que o “homem” já apareça a partir da cidade ou do Estado ou da nação, sem esquecer algo que seja conveniente para fixar a aparência de grande civilização nas cabeças dos aprendizes culturais. Em contrapartida nunca é demais insistir como sempre foi falso esse doutrinamento e como é funesto, ainda hoje, o seu efeito. A fixação pelas grandes civilizações é o proton pseudos, mentira básica e engano capital, não apenas da história e das humanities, mas também das ciências políticas e da psicologia. Ela destrói, pelo menos em última instância, a unidade da evolução humana e desliga a consciência atual da cadeia das inúmeras gerações humanas que elaboraram nossos “potenciais” genéticos e culturais. Ela ofusca a visão do acontecimento fundamental que se antecipa a toda grande civilização e do qual todos os chamados acontecimentos históricos só são derivações posteriores – o acontecimento global: antropogênese. A apologia atual da grande civilização abrevia a história da humanidade em mais de 95%, até 98% de sua duração real, a fim de ter liberdade para uma doutrinação ideológica e antropológica em alto grau – a doutrina, entendida como clássica e moderna, do homem como um “ser político”. Seu sentido é apresentar o homem a priori como um animal burguês que, para sua realização essencial, pecisa de capitais, bibliotecas, catedrais, academias e representações diplomáticas. Onde quer que a ideologia da grande civilização se tenha estabelecido, apaga-se em cada qual a pré-história – como se cada novo indivíduo fosse um pobre selvagem que, tão rapidamente quanto possível, deve ser amadurecido para a vida em Estados. Se suspendermos a aniquilação da pré-história, então surgirão conhecimentos de uma condição de centenas de milhares de anos da humanidade, da qual só recentemente apareceram preocupantes desvios – desvios cujos efeitos se somam ao que Lévi-Strauss denominou história quente. 

Peter Slotjerdik



4 Comments:

At 4 de fevereiro de 2016 às 09:26, Anonymous Anônimo said...

Por favor, poderia colocar a fonte de onde foi retirado esse texto?
Obrigado!

 
At 5 de fevereiro de 2016 às 06:32, Anonymous Anônimo said...

O livro do Slotjerdik se chama "No mesmo barco".

 
At 6 de fevereiro de 2016 às 12:47, Anonymous Anônimo said...

Valeu!!! teria ele em pdf para nós ?

 
At 8 de fevereiro de 2016 às 13:48, Anonymous Anônimo said...

http://lmgtfy.com/?q=slotjerdik+mesmo+barco+pdf

 

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